Durante a graduação em Licenciatura em Música no Centro Universitário Metodista – IPA, em Porto Alegre, tive a feliz oportunidade de conhecer e vivenciar o trabalho de música no espaço hospitalar. Antes da faculdade, ainda adolescente, eu já havia cantado com um coro em hospitais de Santa Cruz do Sul, porém essa experiência de educação musical no espaço hospitalar proporcionada pelo curso de música foi sem dúvidas um divisor de águas na minha vida pessoal e profissional.
O trabalho de música no hospital foi realizado em grupo em um hospital de Porto Alegre. Meus colegas e eu realizamos práticas musicais pelos corredores e leitos do hospital e oficinas de música com temáticas diversas (Semana Farroupilha, Dia das crianças, Jovem Guarda, entre outras). Essas atividades tinham como principal objetivo contribuir com as políticas de humanização hospitalar promovendo experiências de educação musical para pacientes, familiares e funcionários por meio da apreciação, do canto e da prática instrumental em conjunto.
Foram muitos os questionamentos e reflexões que permearam meus pensamentos a partir do momento que me deparei com esse desafio. Inúmeras vezes acordei no meio da noite ou demorei a pegar no sono pensando em algo que havia ocorrido no hospital. Refleti bastante sobre nossas abordagens durante as práticas, principalmente, sobre de que maneira ocorre a educação musical no espaço hospitalar, quais foram as propostas que evidenciaram aprendizagens musicais, se ocorre educação musical nas práticas realizadas nos corredores ou somente durante as oficinas de música, quais as diferenças desse espaço em comparação ao espaço escolar e quais os desafios para o educador musical que desenvolve seu trabalho no espaço hospitalar.
A meu ver, a educação musical ocorre a todo o momento durante as práticas musicais no hospital, e não somente durante as oficinas, onde determinamos um espaço específico, assim como uma sala de aula para dialogarmos sobre música e realizarmos determinadas práticas musicais.
Acredito que a educação musical ocorre desde o momento em que o paciente observa-nos nos corredores cantando e acompanha com sua voz, ou quando ele recebe um instrumento de percussão e contribui para o arranjo tocando. Mesmo aqueles que não podem interagir ativamente, também estão se educando musicalmente de alguma maneira, pois a apreciação também faz parte da educação musical.
Concordo com o autor Silva Junior (2012) no que se refere a música no espaço hospitalar:
Nessa proposta de humanização, a música se insere como meio para a melhoria da qualidade de vida do paciente internado no hospital, através do fazer musical, do agir sobre o objeto musical, no qual o paciente tem um papel ativo na busca de sua melhora e alta hospitalar. As atividades musicais de cantar, tocar um instrumento e ouvir música podem exercer um papel terapêutico e melhora da qualidade de vida do indivíduo, além de caracterizar o ensino e aprendizagem da música (SILVA; JUNIOR, 2012, p. 172).
Antes dessa vivência, eu não conseguia perceber de que maneira a educação musical poderia estar presente no espaço hospitalar, pois via a música apenas como recreação nesse contexto. Hoje, percebo que, além de aprendizagens musicais, saúde cultural e lazer, a música é capaz de levar a esse ambiente momentos de alegria e de reencontro consigo, com suas memórias, e com suas esperanças.
A visão que eu tinha do hospital como sendo um espaço de tristeza e doença, durante essa experiência se desfez, pois presenciei vários momentos de esperança e vida. A dor, as preocupações e incertezas estão presentes, mas nem por isso a alegria é deixada de lado. Às vezes essa alegria se esconde, retrai-se, bastando um estímulo para que volte a mostrar sua beleza e energia.
Hoje passo a ver o hospital como um espaço de cura e luta pela vida, onde nem todos saem vencedores da batalha, mas todos tentam e tem esperança em recuperar na recuperação da saúde. Concordo com a fala de Michel (2005), que destaca:
O sujeito, que o sofrimento isola e que o mundo em volta afasta, descobre que este mundo vem a si, fala-lhe com todas as vozes e sons possíveis, não como espetáculo de ruptura mas como oferenda de calor e proximidade, como convite à troca e à partilha. A música no hospital não é uma distração fundada na produção de um “outro lugar”: é convite a uma viagem para a interioridade; não se quer uma terapia mas apenas e modestamente uma contribuição singular para que todas as terapias tenham sucesso se possível, até pelo fato de favorecer a posição do paciente enquanto sujeito (MICHEL, 2005, p.10)
Este é um espaço que me oportunizou refletir sobre as diversas maneiras de desenvolver a educação musical. Além disso, pude comprovar, através da prática, que a educação musical vai muito além das salas de aula; ela está presente nas vivências, nas relações humanas e na troca de experiências.
A música no espaço hospitalar difere-se de qualquer outra experiência musical que eu já tenha vivenciado. Ele não pode ser comparado ao espaço escolar e nem as performances de espetáculo. No hospital, não há um espaço onde são ministradas as aulas, nem mesmo um grupo específico para participar das práticas musicais. Muito do que se planeja para cada encontro musical é modificado, dando espaço para o improviso.
No hospital, também não há um público; todos são atuantes no fazer musical. Aquela distância que o palco oferece entre o artista e a platéia é desfeita e, dessa forma, o processo torna-se enriquecedor, pois amplia o contato humano. Essa proposta de trabalho exige competências diversas, não somente habilidades com a música, mas principalmente com o relacionamento interpessoal.
Sob essa perspectiva, cito o relato de um músico, descrito no artigo de Leão e Flusser (2008), no artigo intitulado como “Música para idosos institucionalizados: percepção de músicos atuantes”:
[…] descobri um outro modo de fazer música. O aspecto frontal público-artista (em que o músico fica no palco e o público assiste da platéia) não existe mais. As pessoas idosa, as famílias, a equipe do serviço, participam e se tornam os atores da atuação do músico. Eu aprendi muitas coisas as quais eu não esperava. É um trabalho verdadeiramente enriquecedor que requer reais qualidades, mas, sobretudo muitas competências diversas. Propor esta ação junto às pessoas idosas tornou-se para mim uma verdadeira experiência de vida. Eu aprendo a conhecer os limites da pessoa, não exigir performance de sua parte, compreender o que ela deseja verdadeiramente e, sobretudo, respeitar suas escolhas (LEÃO; FLUSSER, 2008, p. 77)
Através dessa experiência, pude exercitar minha humanidade, minha empatia e descobrir novos campos de atuação dentro da educação musical. Juntamente com meus colegas, tive a oportunidade de levar cultura através de práticas musicais, a fim de minimizar o isolamento de pessoas hospitalizadas.
Pude perceber a importância de ações que permitam tirar o foco da dor, do sofrimento e motivar para a recuperação. Além disso, aprendi a compreender melhor a comunicação não verbal, a interpretar as expressões das pessoas. Aprendi ainda a ouvir o que as pessoas têm a dizer, mesmo que não haja palavras, pois é possível comunicar-se através de um olhar, de um sorriso, de uma lágrima ou de um abraço.
Todas essas vivências certamente contribuíram para a construção de minha identidade profissional e na busca de meu papel como docente, além de ajustar minhas lentes para a realidade dos meus semelhantes e de minha responsabilidade social como educadora.